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Eu vi uma centenária se vacinando contra a Covid-19

Crônica, por Yago Sales 

Do Celta prata 2000 a um Audi A3 Sedan cor verde oliva. Centenas de carros, um atrás do outro. De dentro, cabecinhas brancas, rostos enrugados, corpos frágeis podiam ser vistos pelas ruas adjacentes à Área I da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás).

Era o milagre de fevereiro, mês em que se completa um ano desde que o Brasil soube da primeira confirmação de contaminação pela Covid-19. Enquanto filhos, netos, bisnetos, irmãos, sobrinhos – qualquer um que ama – dirigem para o posto de vacinação drive-thru, o Brasil ainda chora mais de 230 mil mortos.

Uma idosa centenária, sem audição, mas com olhos que viam pela primeira vez uma rua que não era a sua (que via pela janela), em êxtase. Cento e dois anos. Escrevo por extenso porque cem anos é infinito. Aos 26 anos, acho que vivi demais. Que ocupei demais a geografia dum mundo em desordem. Mas é engano.

Eu a encarei não como repórter, mas como o trineto que poderia ter sepultado, caixão lacrado, ao corpo da trisavô sem despedida. Que sofrera à dor de perder a memória da genealogia. Que perdera o calcanhar da minha história. E quantos não sentem isso num mundo com milhões de corpos sepultados por causa do vírus.

A velhinha era o tempo todo acariciada, do banco de trás, pela filha mais velha, de 80 anos – que, se tivesse 85 anos, também seria vacinada. Diante de seu corpinho pressionado pelo cinto de segurança, no banco de trás, ouvi a frase do filho mais novo, de 62 anos, que dirigia e parou para falar comigo por alguns minutos: “Ela escapou porque nós amamos.”

O cabelo ralo – quase nuvens em dias confusos, chove-não-chove – escorria pelo ombro caído daquela mulher que pariu doze filhos. E as mãos, meu Deus. Que vontade de segurar levemente… quando se envelhece, a pele pode ceder. É por isso que nossos velhinhos se machucam facilmente.

Mas os bracinhos dela sentiriam a agulha com a substância-milagre. Aquilo que os cientistas fuçaram e encontraram.

Sem ouvir nenhuma palavra, ela sorria. Sabia que estava bem, depois que sentiu o algodão molhado de álcool e a picada encontrando a pele, a carne, o sangue.

Os olhos de todos de dentro do carro encheram de lágrima. E os meus também. A única pergunta que fiz foi à enfermeira.

– É uma esperança?

– Sim, a ciência venceu.

 

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